Por Fernanda Meybom, engenheira química, sommelier e Mestre em Estilos e Avaliação de cervejas.
A cerveja artesanal brasileira vive numa “bolha” do homem branco de classe média. Não precisamos nem de dados do IBGE ou qualquer outra pesquisa estatística, basta observar profissionais, donos de cervejarias e seus consumidores em festivais, por exemplo. Não há diversidade. São os mesmo tipos de pessoas num universo de cervejas mais amargas que as Light Lagers que costumávamos beber.
Há algumas semanas, diversas cervejarias publicaram em suas redes sociais quadradinhos pretos, símbolo do movimento “vidas negras importam”. Infelizmente, o que vimos foi apenas (mais) uma ação para aparentar um posicionamento social como ferramenta de marketing: “Vejam consumidores, nós nos importamos com desigualdades sociais. Somos legais. Bebam a nossa cerveja”. Na prática, há pouca (ou quase nenhuma) ação concreta e efetiva para diminuir desigualdades sociais ou aumentar a representatividade de pessoas negras na cerveja.
Cerveja artesanal brasileira continua sendo uma cerveja clara com doses extras de amargor, por vezes, aquele ruim, harsh, difícil de engolir mesmo. Amargo que não vem do lúpulo, mas de nossa total falta de capacidade de reconhecer o nosso privilégio de branco. No alto de nossa arrogância branca, continuamos fazendo rótulos com pessoas pretas na imagem para associar a uma cerveja escura. Como bem disse Eduardo Sena, do Hora do Gole, a imagem de pessoas pretas em rótulos para fins de puro marketing é o retrato de nossa ignorância (leia o texto dele aqui).
Nossa ignorância em nos mantermos (por opção) desconhecedores da história e cultura das diversas etnias do nosso país. Nossa ignorância e prepotência branca em pensar que ao rotular a imagem da pessoa preta nós estaríamos prestando uma “homenagem” a eles, como defenderam consumidores da tal cerveja.
Vamos refletir um pouco sobre essa “homenagem”. Alguém por acaso questionou uma associação ou grupo que os representam se esta é a forma como eles gostariam de ser homenageados? Ouviram essas pessoas? A venda do produto iria de alguma forma retornar em ações efetivas contra o racismo? Elas se sentiriam representadas no rótulo, dessa forma? Acredito que, em nenhum momento, nenhuma dessas perguntas tenha sequer passado pela nossa cabeça.
Nossa arrogância branca não nos permite perceber que, com a melhor intenção que pensamos que podemos ter neste “simples” ato da imagem no rótulo, ao invés de homenagear, nós estamos, sim, mais uma vez, ofendendo toda uma história, cultura e etnia. E pode realmente ser verdadeiro o pensamento da cervejaria em questão, que em nenhum momento ninguém tinha a intenção real de ofender. Mas ofendeu. E o problema está justamente aí: em não percebemos o que nossas ações podem causar a quem realmente importa, em quem dói.
Um outro, mais recente, episódio de nossa ignorância branca aconteceu quando a Cervejaria Implicantes (RS), a primeira fábrica cervejeira negra do Brasil, fez uma “vaquinha” on-line, para que, neste momento de dificuldade que todos estamos vivendo, a cervejaria continue a funcionar. E, detalhe, nem é uma simples doação, você recebe produtos, você está comprando algo. E o resultado foram massivos ataques racistas em suas redes sociais. Os comentários divulgados pela cervejaria revelam a face normalizada do crime de racismo. Diversas cervejarias que conheço fizeram a mesma ação e não houve ataques contrários, então, por que com eles houve isso? Por racismo mesmo.
Alguns chegaram a dizer o absurdo de que havia uma apropriação indevida da cultura cervejeira por eles, já que cerveja “é uma bebida dos brancos (nórdicos)”. A falácia desse argumento foi maravilhosamente bem refutada pelo Marcio Beck em seu artigo “A cerveja pertence a todos” para a Farofa Magazine.
Em um outro momento, foi citado Garrett Oliver como um exemplo de pessoa preta de grande sucesso no meio cervejeiro e que “nunca fez mimimi” ou nunca “se vitimizou”. De fato, nós não podemos comparar histórias e vivências, as pessoas não têm as mesmas vidas e oportunidades. Além do mais, é completamente raso fazer uma afirmação como essa, pois, afinal, ninguém esteve na pele dele pra saber como foi exatamente alcançar esse sucesso e reconhecimento profissional. E mais, de todos os profissionais de renome do mercado cervejeiro mundial, quantos são negros, além do Garrett Oliver? Algum outro nome vem na sua cabeça? Agora, vamos fazer a lista de quantos brancos nós temos? Aposto que em poucos segundos sua lista se formou com mais de 10 nomes, pelo menos.
Eu sei que esse não é meu lugar de fala, mas convido o leitor a refletir comigo com a seguinte pergunta de um dos textos do Eduardo Sena: “Como opinar em algo que não dói em nós mesmos?”. Como, exatamente, eu ainda não sei, mas o fato de fazermos essa pergunta já nos ajuda bastante na reflexão de nosso comportamento, por muitas vezes racista. Seja ele por querer, por meio de ataques diretos, ou ainda sem querer, por ignorância ou desconhecimento. O fato é que nenhum desses comportamentos de nós, brancos, se justifica. Continua sendo errado, continua sendo um crime. E se, por acaso, você discorda da ação da Cervejaria Implicantes, basta simplesmente não fazer nada. Não opinar também é uma opção. E, novamente, ofensa racista não é opinião e muito menos opção, é crime.
“O racismo na cerveja é o amargo que não devemos mais engolir” — Eduardo Sena
Para ler o texto de Eduardo Sena, acesse este link.
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