New England Beer Calling — A Cerveja Trapista da Nova Inglaterra

Por Thiago Martini, beer sommelier, juiz BJCP, Certified Beer Server Cicerone e cervejeiro caseiro.

Primeiro dia após o solstício de verão no hemisfério norte, um lindo sábado de sol, clima perfeito para conhecer a única cervejaria Trapista fora da Europa. A Spencer Brewery, localizada em Spencer, no estado de Massachusetts, fica a cerca de 80 km de Boston, e abre apenas uma vez ao ano para a comunidade. Por estar dentro da área da Abadia de St. Joseph, uma atividade rotineira de visitação inviabilizaria a forma de vida monástica contemplativa dos monges beneditinos, que tem como princípio de vida o “Ora et Labora”, prezando pelo silêncio, oração e trabalho.  

Existe mais de 170 monastérios da Ordem Cistercienses da Estrita Observância, ou simplesmente Ordem Trapista, nos cinco continentes, mas somente 14 produzem a autêntica cerveja com o selo Trapista, sendo 6 na Bélgica, 2 na Holanda, e 1 na Itália, Espanha, Áustria, Inglaterra, França e a Spencer nos Estados Unidos. A origem do nome “Trapista” surge em referência a um dos primeiros mosteiros da Ordem, a Abadia de Notre Dame de La Trappe na França. O selo Authentic Trappist Product foi criado em 1997 a fim de regulamentar a certificação dos produtos de acordo com a International Trappist Association.

Voltando ao grande dia da visitação, esse foi apenas o quarto evento da chamada “Annual Open House”, considerando que a cervejaria iniciou sua operação em 2013. Logo na chegada, pela manhã, já me surpreendo com a intensa movimentação de carros para um público esperado de cerca de 6.000 pessoas. O complexo do mosteiro da abadia fica numa região rural cercada por muita natureza. Lá, os monges também produzem geleias e chocolates, que por sinal, são tão bons quanto às cervejas.

Depois de comprar os tickets para adquirir as cervejas on tap para consumir no local ou envasadas para levar, sigo diretamente para a visita autoguiada na cervejaria, tamanha era minha curiosidade. É uma construção moderna e simples ao mesmo tempo, com 3.300m² de área construída, em que os equipamentos foram todos importados da Alemanha, segundo informação dada por um simpático monge que estava disponível para um breve bate papo.

Ele também relatou que a ideia de produzir cerveja surgiu quando um dos monges foi realizar treinamento em uma pequena cervejaria artesanal local e acabou se interessando muito pela nobre arte que remete a tão famosa tradição trapista. Ao longo do tempo, sua paixão contagiou outros monges e o projeto começou a tomar forma. Assim, por volta de 2010, uma pequena comitiva visitou cada uma das cervejarias trapistas que operavam na Europa. Foram dois anos entre visitas, coletas de dados e aprendizados sobre a arte de “brassar”. Dentro do mosterio já se falava da necessidade de se criar um novo negócio, mais moderno e de maior escala para a autossustentação financeira do mosteiro.

Após a rápida conversa com o monge, fui me dedicar a curtir aquele momento especial e ir atrás das torneiras com as incríveis cervejas. De cara, fui degustar até então a única American IPA trapista do mundo. O “até então” porque agora, início de junho, foi anunciado na Europa o lançamento de uma nova versão de IPA trapista, uma colaborativa entre a própria Spencer e a Abadia Tre Fontane, mosteiro que produz a cerveja trapista italiana. É o primeiro projeto colaborativo trapista, que terá uma produção limitada e só será vendida na Europa mesmo.

Também havia algumas opções de cervejas envelhecidas, como uma excelente Saison com pêssego maturada em barril de chardonnay, de uma Dark Strong Ale e uma Imperial Stout maturadas em barril de carvalho. Atualmente a Spencer produz 10 rótulos entre estilos clássicos belgas e modernos americanos, sendo alguns sazonais.

Conta com uma produção anual de 5 mil barris, em que cerca de 40% da produção é exportada para a Europa. No entanto, a capacidade de produção instalada é de 40 mil barris por ano. Para um futuro próximo, estudam a possibilidade de abrir um taproom junto à área da Abadia, desde que não prejudique o cotidiano monástico além do projeto de instalação de painéis solares na cervejaria.

Essa experiência me proporcionou viver séculos de historia, conhecimento e tradição cervejeira aliada à modernidade das instalações de produção. Como disse Isaac Keeley, monge responsável pela cervejaria, era o desafio de entrar na modernidade do século XXI sem se esquecer das tradições trapistas: “The Brewery blends well with life at the monastery, It’s a compatible with monastic life. There is a quiet and contemplative side. We see this as our industry for this century”. E nós, como apreciadores de cervejas só temos que agradecer por toda esta dedicação. Grande abraço e boas cervejas!

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